LÚDICO E LÚCIDO







Seguindo firme, aos Trancos e Barrancos!




            Pensando bem, com meu faro de gente do mato e com a aprovação de meus inseparáveis botões, sinto que você se identificou logo com o nome do nome desta página.
            Sendo você esta pessoa de fibra, raça, coragem e ginga, que conhece nossa ginga brasileira, sei que você sabe muito bem que nossa labuta não tem sido nenhum passeio de férias bem sucedidas.
Francamente! Depois de uns quinhentos anos de abandono, de orfandade política, educativa, cultural e de honestidade em nossos comandos, fica até difícil bater muito forte quando se escuta alguns gemidos, vindos de todas as bandas que nos cercam.
            Mas, como somos pessoas teimosas, gostamos da vida que a Vida nos permite viver, não são aí uns poucos séculos sob as trapaças de alguns que nos impediria de chegar aqui, sonhando, com esperança e certeza, com um futuro maravilhoso!

            Não negarei jamais que minha vida é uma beleza! Vindo de onde vim, com os recursos que estiveram à minha disposição, passando pelas encruzilhadas que passei, mesmo com momentos de celebração e gozo, devo admitir que a labuta tem sido medonha. Não foram poucas as vezes que desejei e, sem o menor constrangimento, joguei a carga no chão, quebrei a canga e me recusei a ser boi manso.
            Assim sendo, vivi momentos preciosos. Mas, como diria Tião Brasil, tem hora que só continuamos por pirraça. Sim, às vezes acho mesmo que estamos vivos, com esta força brasileira que nos move e nos sustenta, não é por virtude e sim por pirraça!

            É por isto que aqui estamos nós, proseando, começando este começo bem começado de boas conversas, de minha parte, com muita alegria, acreditando que muitas transformações brotarão destas conversas, ainda que aos Trancos e Barrancos.

            Aproveitarei a oportunidade para honrar, aqui neste espaço, como faço em todos os momentos de minha caminhada, alguns símbolos que marcaram e marcam minha caminhada. Personagem, parentes, amigas e amigos que me ajudam a traduzir nossa gente e nossa cultura com a força e as cores do sertão Brasileiro. Com estas pessoas canto meu canto de gratidão e de transformação pelos momentos sublimes que a Vida me permitiu buscar, cavar fundo, buscar, encontrar e viver com alegria!  



Seo Mutambeiro se parece muito comigo, este contador que tem o prazer de prosear com você. Simples, corajoso, sabido, como diria eu mesmo, é a pessoa mais sabida que conheço, depois de mim.
Este velho estradeiro, caminhou tanto, atravessou tantas grotas, morros, cerras e barrancos que se tornou poligrota, criador de causos, domador de mulas, inclusive mulas sem cabeça, tem a árdua e divertida tarefa de acompanhar Seo Picumã e Zé Peroba, inventando estórias, causos e cantigas para que os dois velhos sigam celebrando a arte de ser o sertão brasileiro.
Seo Mutambeiro, ainda que muito jovem, é a tradução das boas coisas que meu papai e minha mamãe me mostraram.  
Por ser muito sensível e inventador, Seo Mutambeiro é também muito corajoso. Dizem, e eu confirmo, que ele não tem medo de nada, nem mesmo de ter medo. Sendo assim, sempre que preciso ser assertivo, sendo a situação um pouco complicada, chamo Seo Mutambieo, pois ele, com sensibilidade, beleza e perícia é sempre assertivo, acerta todos os coices necessários para abrir certas portas e espantar todos os males bravos que tentam importunar nossa caminhada.
Você o verá em minhas obras. Está tão presente em meus livros que, às vezes ele e os dois outros contadores assumem a estória e eu sou honrado com o direito de por meu nome na capa do livro.
Assim é este velho sabido e valioso que segue as cores do Brasil e a magia de nossa Cultura Popular Brasileira, cantada em minha obra.



Seo Picumã é meu compadre, ainda que ninguém tenha se tornado afilhado de nenhum de nós dois. Este sabido e labutador filho da África chegou em meus dias, em minhas estradas, lá nos mistérios de meu sertão, nos encantos da FPA, a Fazenda Paraíso dos Animais, onde aprendi boas lições e de onde trago imagens que traduzem as cores do Brasil.
Compadre e quase irmão de Zé Peroba, Seo Picumã tem setenta e nove anos. Na verdade, quando ele me contou a primeira estória, disse que seu avo havia lhe contado aquela aventura em seu aniversário de setenta e nove anos.
Contador de causos, cantador, adivinhador, amigos dos bichos, da vida e de tudo que é primitivo, natural e lúcido. Seo picumã traduz imagens de minha infância, que revolucionaram minhas estradas. É a tradução de minha mamãe e sua gente africana e tupinambá.
Seo Picumã tem uma virtude rara: não é teimoso. Quando ele e Zé Peroba driblam até mesmo a paciência do tempo, em suas conversas longas, sabidas e sem pressa, é sempre ele  pronuncia as últimas palavras, ou a prosa se torna eterna. Ele disse que não é teimoso, só não gosta que discordam do que ele diz.



Zé Peroba Zé Peroba é meu irmão. Quase gêmeo. Só que ele tem setenta e sete anos. Na verdade, desde que nos tornamos irmãos, esta contador valioso tem esta idade. E olhe que já caminhamos por algumas boas e longas estradas nestas longas, divertidas e revolucionárias décadas que nos unem.
Zé Peroba é a tradução da essência da gente simples, forte, mágica e valiosa de minha gente e de meu sertão. Gente e sertão de onde trago a força de minha caminhada.
Com este contador mágico que há em Zé Peroba me expresso, sendo o eco da voz de minha gente simples que, com seu jeito mateiro de ser, me mostrou a vida em forma de luta, de buscas, descobertas e arte.



Dona Juventina é a tradução da essência da Escola que o sertão brasileiro significa em minha caminhada. Com esta velha linda, lúdica e lúcida trago a força de todas as mulheres especiais, vivas, fortes, corajosas e afetuosas que me mostraram e mostram as ferramentas com as quais revoluciono minha vida e empodero minha caminhada.
Em Dona Juventina, velha sabida, contadora, cantadora, perspicaz, mateira e amorosa, honro e canto belas mulheres com as quais me sinto mais gente, mais brasileiro. Minha mamãe Francisca, minhas vovos Avelina e Josina, minhas tias, minhas irmãs, minha sogra Maria Giardini e minha companheira Sheila Murta, uma pessoa de valores sublimes.
Se para seguir bem é saudável ter por perto uma mulher de muito valor, sigo firme, pois em Dona Juventina traduzo muitas mulheres de muitos valores que marcam, encantam e definem minhas buscas e descobertas.


Raimunda! A tradução da força das mulheres e moças que dão impulso à minha obra.
Depois de tantos velhos, uma com o cheiro do mato e a dança do vento alegra a vida de minha caminhada pela arte e pela literatura.
Raimunda adora ler. Tem paixão pelos livros. Gosta muito de cartas e bilhetes. Às vezes, para dizer que está nos balanços, com as amigas e os amigos, ela escreve um bilhete grande e lindo. E tem sempre alguns P.S!
Raimunda é a lembrança, a homenagem, a força e a beleza das crianças que, esquecidas e abandonados por seus genitores e genitoras, traçaram suas próprias estradas, forjadas e amparadas pelos Trancos e Barrancos da vida.
Um dia pediram para Raimunda dizer, em poucas palavras, o e quem ela é. Foi nada não, a moça respirou fundo, sorriu para o mundo e disse:
Nasci de uma lenda. Sou filha da Natureza e tenho em mim muita alegria.
Venha! Quero lhe mostrar a beleza de nossa gente, a importância de nossos bichos, as cores de nossa arte e a força de nossa Mitologia.



Muito bem! Agora que já nos conhecemos, já lhe apresentei um pouco de minha gente, de minha força, lhe mostrei um pouca das pessoas e símbolos especiais de minha caminhada e de minha arte, vamos prosear na linguagem desta gente forte, lúdica, lúcida e valiosa de meu sertão.



         Depois de muita prosa e boas descobertas, já nos conhecemos o suficiente para conversas mais próximas, sem tantos rodeios. Sinto que podemos falar sobre assuntos naturais, por nossa caminhada e nossas semelhanças, polêmicos e assustadores às pessoas que estão se aproximando, que ainda não se sentem tão inteiradas destas ideias. Mas, é uma questão de parágrafos, linhas, palavras e já seremos todos bem conhecidos, falando numa sintonia confortável, divertida, transformadora e muito interessante.

         É claro que todas e todos que me conhecem sabem que sou calmo, mesmo não tendo estopim, sei e consigo contar até um e meio, dois, sem perder as estribeiras. Porém, não posso deixar de admitir e confessar que sou destemido, não consigo baixar muito a cabeça nem a cacunda, até por uma questão da lei da física, minha caminhada exige muito atenção de minha atenção sobre meu movimentos. Se me curvar muito, posso perder o equilíbrio e, mudaremos de assunto, no próximo parágrafo.
         Hoje, lhe contarei algumas aventuras, coisas simples de quem caminha por este mundão sem fronteira, que acabará deixando transparecer uma coisa que tenho e sou, desde meus primeiros movimentos: valentia. Sou muito valente. Também por isto continuo vivo, caminhando de cabeça erguida.
         Usarei meus amigos, estimados companheiros, Seo Picumã e Zé Peroba, para traduzirem, com suas palavras deles, alguns detalhes destas labutas.

         Então, aqui está

O REPENTE DOS VALENTES

Zé Peroba – Seo Picumã, meu velho e estimado amigo e compadre. Já me disseram que o amigo é mesmo muito valente.
Seo Picumã – Valente, valente não sou não. Mas, medo também não tenho. Não tenho medo nem de ter medo. Sabe, Zé Peroba, mesmo não sendo assim tão valente, já lutei e labutei muito nesta minha vida de boas lembranças.
Zé Peroba – E é, Seo Picumã? Pois então vamos prosear sobre nossas lembranças. Me conte aqui a estória de alguma luta, de algum momento de valentia do compadre.
Seo Picumã – Zé Peroba, você deixe de aperreação. Depois dirão que gosto muito de falar sobre minhas qualidades. Mas, a verdade é que não tenho vergonha de ser quem sou. E mais, gosto muito de ser eu. Então, não deixo de dizer a verdade sobre mim e o que se escuta a meu respeito, quando conto, é de arrepiar.
Zé Peroba – Deixe de enrolação. Conte logo a estória de uma luta que eu também quero contar alguma minha.
Seo Picumã – Pois então escute bem. Escutem todas e todos, pois é uma luta e tanto.
Zé Peroba – Pode contar que estamos escutando.

Seo Picumã

Vou lhes contar toda minha caminhada, uma vida de aventuras pra ninguém me esquecer.
Desde criança que sou muito respeitado, sou um cabra arretado, nunca soube o que é tremer.

Na minha vida as coisas são diretas e sem demora. Por isto, como sou muito valente, minha primeira batalha foi logo lá no começo, quando eu era um lindo bebê.
Foi numa tarde marombeira, perto de uma grande ribanceira, um cenário de arrepiar e de fazer pedra tremer.

Foi nada não. Estávamos passeando, minha mamãe ali me amamentando, quando ouvi um barulhão, um tremendo lequedê.
Era um bando de valentes. eles vinham caçando encrenca provocando um fuzuê.
Minha mamãe ficou preocupada, precisava me proteger.
Foi nada não, minha Gente, sendo eu um filho educado, um cabra arretado e valente, entrei em cena para não ver minha mamãe, preocupada, detesto ver gente amada minha preocupada, sendo aperreada pelo sofrer.

Interrompi meu delicioso momento de alimentação, deixei pra mamar mais tarde, saltei do colo de minha mamãe. Naquele momento eu fiz o mundo tremer.
Encarei aquele bando, que ao me ver assim tão lindo e pequenino, todos começaram a mangar de mim e disseram para eu me esconder.
Disseram para eu procurar uma rede, dormir, crescer e depois aparecer.
Arregacei as mangas de minha camisa e me preparei para acabar logo com aquele trelêlê.

Foi nada não. Quando dei um salto medonho, soltei lá uma fungada terrível, dei um baita gaitada, passei a mão num pau de lenha, encarei aquela cambada, fiz uma careta terrível, até o mato começou a tremer.
Minha gente, foi aquela debandada, o bando saiu tremendo, todo mundo correndo e gritando de medo, caçando moita para se esconder.

Zé Peroba – Alguém, por favor, bata aqui na minha cacunda. Calma, Seo Mutambeiro, com carinho, com jeito. É só para espantar o espanto e trazer minha respiração de volta. Quer dizer então que Seo Picumã é tão valente, tão corajoso e arretado que mesmo quando criança, interrompeu um passeio, parou de mamar em sua mamãe, enfrentou um bando de arruaceiros e botou todos para correr?
Seo Picumã – Foi. Sou mesmo assim, coragem para seguir e não permitir que me impeçam de caminhar e fazer o que precisa ser feito. E você, Zé Peroba, fale aí de sua coragem. Saber que o compadre é valente, todo mundo sabe. Porém, tem sempre algum detalhe, algum acontecimento que nunca se esparrama e fica na tuia dos segredos. Conte aqui alguma aventura de suas valentias.
Zé Peroba – Pois então contarei. Já que todas e todos desejam me escutar, desejam conhecer um pouco de minhas labutas, falarei de algum rapapé mais simples, para não dar margem à dúvidas, pois assim como Seo ZéDuBuriti, não gosto que discordem de mim.
Escutem este causo e verão como sou mesmo corajoso, um pouco parecido com meu compadre Seo Picumã.

Zé Peroba 

Vou contar a minha saga, uma sina, uma aventura, pois pra mim quem gosta da caminhada está na vida é pra viver.
Eu sou assim desde minha meninice, não tenho medo de nada. Quando tremo é de alegria, de frio ou de paixão, pois se tenho um coração limpo, também tenho um bem querer.  

Quero contar minha primeira batalha. Foi há muito tempo atrás, antes deste contador nascer.
Uma aventura que aconteceu num momento de coragem e dedicação, pois minha mamãe estava em perigo e eu tive que entrar em cena e a peleja resolver.
Foi no final de um dia agitado, a tarde seguia animada, o dia já estava com sono. Já começava escurecer.

Estava ali minha mamãe passeando. As belezas do mato apreciando, quando apareceu uma cobra, uma cascavel enorme, a bicha era tão grande que não podia mais crescer.
A fera foi se aproximando, com cara de não sei o quê.
Como não tenho medo de nada, comecei a dançar, mexendo no ventre de minha mamãe, pra dizer que eu estava em cena, eu resolveria a parada, pois sendo eu um cavalheiro, não deixarei uma dama sofrer.

Lá daquele mundo mágico comecei a dar pernadas, fui fazendo umas caretas, fui arregaçando as mangas, pronto pra fazer um meu maculêlê.
A cobra sentiu minha presença, percebeu que haveria um quebra pau e adivinhou que era melhor ela se recolher.

Mas, quando a bicha deu de cara com minha cara, minha cara bem feroz, sentiu suas pernas dela tremendo e foi uma cena de dar graça, a fera fazendo xixi nas calças, batendo queixo, sem dar conta de correr.
O medo da cobra foi tanto, que ainda hoje, quando ela se lembra de mim, venha aquela bambeza danada, a bicha fica parada, com as costas arrepiadas, com uma tremura medonha e o chocalho da fera nunca para de tremer.

Seo Picumã – Minha vovo tinha mesmo razão, a vida é uma Escola muito sabida e o mundo é um trem danado de bom pra mostrar coisas novas para nossos espiadores. A caminhada segue tranquila, vencemos aquela curva e nossos olhos dão de cara com novidades capazes de deixarem até mesmo o destino com a pulga atrás da orelha.
Zé Peroba – Endoidou, Seo Picumã? Que filosofia complicada é essa, homem meu compadre? Se bem que o amigo falou pouco mais falou bonito. Onde o contador quer chegar?
Seo Picumã – Quero chegar nos esconderijos da ciência e ver a cara dela, ver o espanto das lições de bichologia, de biologia, de evolução. Sabe, minha gente, até hoje, neste mundo velho animado, ninguém conhecia este mistério, este segredo.
Quer dizer então que aquele barulhinho famoso, que mete medo até mesmo nas feras mais ferozes do mato é coisa da valentia de Zé Peroba?! Quer dizer que toda a fama de brava e medonha que acompanhou esta fera é apenas um disfarce, tudo é somente a força da lembrança, o peso do medo da imagem da cara feia de Zé Peroba. Cascavel, cobra terrível, tem lá um trauma de peleja e, quando se lembra da cara feia e valente de Zé Peroba, começa a tremer, bate queixo e faz aquele barulho com o chocalho ao tremer o rabo?! Caminhando, espiando, escutando e aprendendo.
Zé Peroba – Se o amigo continuar com esta falação complicada e demorada vão começar a questionar a verdade desta minha labuta. O compadre sabe muito bem que não gosto de exagerar. Quando conto um causo é apenas uma parte da verdade, pra não assustar que me escuta.
Vamos lá, conte aqui mais alguma lembrança, alguma peleja que deixou sinais fortes na vida do compadre e de muitas outras pessoas.
Seo Picumã – Bem, depois de escutar este seu causo, depois de conhecer esta sua peleja, uma luta que mudou a história das estórias e decifrou alguns mistérios da bichologia, fico assim meio acanhado. Mas, me lembrei de uma peleja, uma labuta de espantar até o sono de quem está lendo este causo depois de muito cansaço e preguiça. Vou contar, pois assim ficarão sabendo que sou justo e tomo partido em defeso do povo de minha terra.       
Zé Peroba – Pois então conte logo, homem, meu compadre. Queremos aprender uns segredos com sua labuta.

Seo Picumã

Já lutei muitas batalhas, são tantas que nem consigo me lembrar.
Mas uma ficou muito conhecida, pois mudou a vida de muita gente, mudou o nome de um cerrado e deu coragem ao povo de meu lugar.

Foi numa noite bem fria, lá naquela encruzilhada, na curva da gameleira, lá no mato do juá.
Eu vinha pela estrada, caminhando sem preguiça, quando escutei um barulho, um trem lá do outro mundo que vinha pra me assustar.

Meu cabelo arrepiou, meu chapéu ficou um metro acima de minha cabeça, parece que queria voar.
Mesmo sendo um cabra arretado, vi que era um trem danado, comecei logo a rezar.
Mas, resolvi rezar correndo, pra adiantar minha marcha e aquilo não me pegar.
Corri por mais de trinta horas, pulando por cima de tudo quando era toco, pau, moita, pedra e até brejo. Eu ia mais rápido que o vento, sem poder nem merendar.

Quando vi que não poderia escapulir, decidi parar de vez e a fera enfrentar.
Veja agora todo mundo e saberão que bicho que estava lá.
Era um pedidor de votos que queria me alcançar, dizendo que eu era o escolhido pra votar por um Brasil melhor pra tudo ficar pior ou do jeito que está.

Agarrei logo uma vara, parti pra cima do safado, que vendo logo minha força saiu numa carreira sem rumo, tropeçando nos próprios pés, cai aqui, cai acolá.
A fera se esqueceu de todas as promessas, disse que estava com pressa e foi-se bem abestado. Até hoje está correndo, está correndo sem parar. 

Zé Peroba – Tome aqui um copo d’água. É água pura de minha cabaça. O compadre parece mesmo com sede e deve estar querendo descansar. O amigo então, antes de enfrentar e afugentar a fera, o pedidor de votos, decidiu-se por uma corrida?
Seo Picumã – Sim! Uma corridinha sempre faz bem para nossos ossos, músculos, sangue, coração e todo o corpo.
Zé Peroba – O compadre então deu uma corridinha de umas trinta horas e depois botou a fera perigosa pra correr?
Seo Picumã – Foi. Eu já estava bem arretado, quando percebi que a coisa era perigosa, um perigo para mim, minhas irmãs, meus irmãos e todo nosso sertão, a coragem aumentou e resolvi a labuta botando a fera pra correr e nunca mais voltar.
Mas, deixe de aperreação. Já contei meu causo. Agora é a vez do compadre. Tem mais alguma peleja ai na lembrança? Pois conte logo.
Zé Peroba – Já que o amigo falou em defender o povo, tomar partido, contarei uma peleja que ficou famosa e que também deu sossego à minha gente.
Seo Picumã queremos escutar. Vá contando aí que eu vou comer aqui um pedaço desta rapadura com este requeijão.

Zé Peroba – Se tem alguém pensando que estes nossos causos são rituais de contação de nossas lutas para defender o povo dos predadores, está pensando muito bem. Afinal, quem não tem medo de um predador faminto, armado com uma arma de destruição em massa, chamada Imunidade Parlamentar? Se você não tem, ou é um desta espécie, ou está perto de um dela, ou está querendo ser como estes predadores, ou tem lá seus motivos, sejam lá quais forem.
Assim sendo, que ninguém se engane e vá pensar em altruísmo, lutar pela causa alheia sem pensar nas próprias perebas, amar sem exigir nada em troca. Seo Picumã e eu gostamos de defender o povo, pois somos parte deste povo e, como boa gente brasileira, boa gente que se respeita, não gostamos quando nos tratam como se fôssemos bestas. É impossível respeitar quem não nos respeita. Pensamos assim e seguimos assim.
Seo Picumã – Oxente, Zé Peroba, estes meu rancho hoje está mesmo com a macaca e está nos dando muita coragem e inspiração. Gostei muito deste seu tratado, desta sua fala sobre nossos direitos. Mas, vamos logo com seu causo, homem, meu compadre. As pessoas querem saber logo com foi estas labuta.   

Zé Peroba

Também já lutei bastante. Ninguém consegue minhas lutas contar.
Mas uma ficou famosa, pois deu paz à minha gente, deu paz ao povo de meu lugar.
Foi uma luta com uma onça que depois de perder uma eleição, decidiu ser vagabunda viver assustando os outros, tomando a comida das pessoas, ameaçando os mais medrosos e viver sem trabalhar.
Nos encontramos lá naquela encruzilhada, onde a luta foi combinada, pois aquele tormento precisava terminar.

Mesmo sendo muito forte, tenho cá minhas maneiras minhas maneiras de lutar.
Decidi vencer a onça vencendo só no cansaço, fazendo a bicha correr até nunca mais querer botar gente pra fugir tremendo e ela ficar caçoando, vendo o medo das pessoas e dizendo que ela
Era a poderosa, a dona daquele lugar.

Quando a bicha apareceu, o mundo escureceu, deu vontade de sumir, deu vontade de chorar.
A bicha era tão grande, que só uma pinta do rabo dela era do tamanho deste lugar.

Fiz lá minhas caretas, a bicha ficou zureta, pulou em cima de mim querendo me dominar.
Rapei pé, pulei de lado, ginguei daqui, ginguei de lá.
A onça caiu sentada, ficou ainda mais revoltada, pois não conseguiu me agarrar.

Comecei uma corrida, uma carreira preguiçosa, pra fazer a fera me seguir, aumentando a raiva da bicha pra ela ficar logo cansada e não conseguir me alcançar.
Este foi o meu engano, pois onça enfurecida corre mais que pensamento e corre com muita pressa, sem vontade de parar.

Começamos aquela corrida, parecia uma disputa medonha, parecia um pega pra capá. Pula toco, pula grota, pula córrego, pula rio, acho até que pulamos o mar.
Corremos 20 semanas, sem tempo nem pra descanso, sem ter tempo pra parar.

Quando atravessamos o Cerradão Brasileiro, avistei aquela mata, senti que a coisa havia saído errada, que aquela correria podia nunca mais terminar.
Aumentei minha velocidade, dando pulos de meia légua eu ia cortando o vento senti o gosto de voar.
Aproveitei uma descida, aumentei mais a corrida e encontrei foi uma moita pra poder me amoitar.
Mas, a bicha chegou primeiro e já estava me esperando, com os dentes arreganhados, com os braços bem apertos, pronta pra me abraçar.

O jeito foi mudar as regras da luta, dar um susto naquela bruta e poder voltar pra casa, pois as férias já iam acabar.
Arranquei meu chicote da capanga, fiz uma cara bem feia, dei umas lambadas no ar, cada lambada era um estrondo, barulho maior que trovão, aquilo fazia pedra rolar.
Foi nada não, a valentona, que era uma onça homem, se esqueceu das eleições, não quis mais ser vagabunda e saiu correndo com o rabo entre as pernas, levando o vento e o mato nos peitos, sem olhar para trás. Dizendo que queria arrumar um emprego, ajudar a construir boas coisas, estava doida para trabalhar.
Dei um pulo para cima, o chicote provocou mais alguns estrondos e foi um salve-se quem puder. A onça desapareceu. Dizem que até hoje está correndo, acho que enquanto se lembrar de minha cara valente nunca mais vai conseguir parar.




Pra não ter que ficar pensando sobre o início deste começo, seguirei a Porteira Aberta e lhe contarei uma Lenda, que também pode ser uma Estória, ou mesmo um Causo sobre as ondas mágicas da paixão e os mistérios dos sentimentos. 

Esta Estória eu escutei na minha infância, sabe-se lá com que idade. sei que foi de minha gente, provavelmente de minha mamãe e seus valores dela. Aprendi como uma expressão da arte e da cultura dos Tupinambá, povo brasileiro de onde a Natureza me brindou com minha mamãe, junto com a força de nossa mãe África.

Esta Estória está em meu livro Cantata do Cerrado.     




BEIJA-FLOR DA PAIXÃO

 Por Pedro Lusz

         Foi há muito tempo atrás, quando as cores eram amadas e respeitadas pelas pessoas. Naqueles dias, tudo era calmo, apenas as agitações naturais e deliciosas dos bons momentos.
         Por aquelas bandas, sempre havia gente cantando, gente vivendo a alegria das ondas das boas coisas de cada dia. Era um tempo mágico e sublime.

         Foi numa primavera.
      Naquela tarde, quando o sol estava se preparando para sua caminhada nos braços da noite, tudo começou a mudar. O vento soprava com mais suavidade, os bichos cantavam, saltavam e tinham algum mistério em seus gestos. Para muitos, era apenas mais uma tarde de um dia.
        
Ela, com seus segredos e caprichos, sabia que o tempo sempre avisava quando percebia mudanças. E, como ela e o tempo eram bons amigos, era ela a primeira a conhecer as novidades que por aquelas bandas surgiam.
        
As folhas dançavam, o cheiro do perfume das flores estava claro, limpo, forte e delicioso, como nunca estivera. Era só esperar para presenciar a chegada que, certamente não tardaria.

Ela era uma menina simples, meiga, sabida, encantadora. Conhecia muitos segredos. Sem  que ninguém lhe apresentasse estes mistérios. Conhecia, principalmente os segredos do mato e de seus amigos primitivos. Aquela menina era em si um grande mistério.

         Sete dias antes daquele dia, numa noite de lua morna e suave, ela teve um sonho. Foi um sonho lindo, rápido e tão real que aconteceu enquanto ela estava acordada, escutando as estórias de sua mamãe, que lhe cantava das estrelas.
         No sonho, ela viu um passarinho tão belo que parecia um retrato bonito. Era um passarinho que tinha várias formas. Era uma flor, flor cheirosa, era um menino, um menino educado e carinhoso, era uma dança, uma dança com cheiro de coisa aconchegante.
Ela jamais esqueceria aquele sonho. Suas imagens viveriam para sempre em suas lembranças, em seu coração.        

         Quando tudo começou a mudar naquela tarde de primavera, quando ela percebeu que algum mistério se aproximava, todas as imagens do sonho voltaram ao seu coração.
A menina encantadora apenas sentiu. Sentiu o som de seus gestos . Sentiu o cheiro de uma lembrança que, mesmo sendo novidade, já palpitava em seu peito.
         Ela seguiu os passos da vida, observando o mundo que se preparava para mais uma noite. Então, como numa dança, ela se lembrou que no sonho tudo acontecia nos braços de uma noite de primavera.
O mundo todo começou a pulsar mais forte, se preparando para algo novo, ainda que fosse da idade da vida.
        
Ele apareceu, vindo não se sabe de onde. Chegou como uma brisa morna e, como se fosse um dos que ali viviam, foi recebido pelos bichos com alegria e naturalidade.
         Era um menino esperto, com um sorriso de confiança e muita serenidade em tudo que fazia. Sua simplicidade o tornava muito bonito, também com um que de mistérios e tantos encantos.
         Para muitos, era apenas mais um menino abandonado, desprotegido, que buscava naquela fazenda, como  tantos, a proteção do homem valente, rico e bruto que mandava em tudo e em todos.

         O fazendeiro, quando o viu, percebeu logo que estava diante de um desafio, pois o menino cuidava de muitas tarefas, fazendo as coisas que deveriam ser feitas, antes que o dono ordenasse.
E, não bastasse esta força, os bichos, os animais e mesmo os outros trabalhadores, seguiam os passos do menino, parece que regidos por suas idéias.
         Outro fato que o fazendeiro percebeu também, e não gostou, foi que sua diva, a menina de seus sonhos e zelos, sua alegria e razão de ser forte, havia visto o menino e não perdia um de seus movimentos.

         A noite foi chegando, tomando tudo em seus braços, dominando tudo e trazendo um canto de aconchego aos que sentem as ondas dos toques sutis e sublimes da vida simples.
         Logo, tudo era calmo. Só o silêncio, a tranqüilidade, os sonhos e a música de tantas cantigas. Cantigas dos sapos, dos grilos e de tantos bichos noturnos. Cantigas dos segredos da noite e cantiga dos ribombos de três corações que, mesmo contra a vontade de quem os tinha no peito, pulsavam tão forte quanto os sopros da própria vida quando está sendo conquistada.
        
Ela não se continha. Tudo em seu mundo era música, dança, alegria e um cheiro novo em seus mistérios, algo muito forte estava acontecendo em seu peito, pois nem mesmo o fogo poderia provocar tanto calor em seu corpo.
        
Ele, comandado pelas forças de uma força que o guiou àquele lugar, sabia apenas que todos os seus passos o levaram a estradas que buscavam aquele encontro. Encontro? Como sabia ele que um encontro estava sendo oficializado? Talvez, apenas a noite e seus encantos possa nos responder.
 O menino, em sua rede, no aconchego daquele paiol, embalado pelos sons de tantas cantigas, era uma só força; emoção.
        
Mesmo estando tão perto de tantos encantos, mesmo estando nos braços da noite, aos afagos de tantos sons, ele, o fazendeiro, patrão, dono de tudo, genitor, papai daquela menina e respeitado por todos, não podia e não apreciava as delícias de tão linda noite. Em seu peito também havia muito calor, queimava dentro de seu mundo um fogo muito forte. Tão forte que não o deixava quieto.
Era o dono. O fazendeiro. Tinha tudo, mas nada lhe satisfazia, sequer encontrava um lugar onde pudesse encostar a cabeça e se entregar ao sono que tanto bem lhe faria.
Sua vida estava desordenada. Seu coração não cabia em seu corpo e ele temia por uma explosão em seus segredos, pois tudo vibrava em seu mundo e lhe mostrava imagens que não conhecia, não sabia o que era e percebia que não as dominaria.
         Não havia nuvens por perto. O fazendeiro saiu caminhando, tentando se equilibrar sobre suas botas amedrontadoras.
Um trovão soltou sua voz, sacudindo o mundo e ribombando dentro do peito daquele homem forte e agora tão desamparado. Então ele viu. Viu e precisou sentar-se numa pedra, para não cair, tamanha foi sua emoção. Ele viu, como num sonho, as mesmas imagens que sua menina havia sonhado sete noites atrás.

         Quando o dia amanheceu, o fazendeiro saiu de seu quarto, onde passara a noite sem sequer fechar os olhos. Sua esposa, que partira há tempos, sorria de sua fotografia, bem arrumada sobre a mesa, ao lado da cama. Mesmo naquele sorriso ele percebia os desafios que se aproximavam.

         A vida, desde muito cedo em atividade, estava animada, com suas cores e seus sons quentes de uma manhã de primavera.

         Os olhos do fazendeiro nem precisaram procurar muito, pois viu logo o início das imagens que lhe foram mostradas na noite sem sono.
         Sua menina, linda, bela e faceira como sempre, flutuava com seus sentimentos suaves, numa onda de mistérios e sinais intraduzíveis. Ela caminhava na direção do menino que a esperava com serenidade e com palavras musicais. 

         Caminhei por estradas desconhecidas. Atravessei vaus, pontes, porteiras e distâncias incontáveis. Em meu peito havia uma luz suave que traçava meus rumos. Quando cheguei aqui e senti o cheiro de teu sorriso, percebi que em teu semblante, em teus movimentos, em tua presença está esta luz que eu tanto segui.
         Para isto cheguei aqui. Meu coração, mesmo sendo um coração menino, sabe que há forças terríveis que se colocarão em nossas estradas. Mas, força alguma poderá impedir este encontro. Veja ...
        
         O suspiro que cantou no peito da menina foi tão profundo, tão musical, que o menino ficou em silêncio, apreciando a grandiosidade daquele semblante que lhe sorria.
         A menina sequer percebia se seu canto era choro, ou se seu choro estava cantando. Diante de seus olhos estavam as cores das imagens que a vida lhe mostrara naquele sonho.
        
O menino havia plantado uma flor. Como se a vida soprasse sua magia sobre aquela planta, ela começou a dançar aos afagos do vento e dançou, dançou, dançou e se transformou, e já era uma porção de galhos, muitas folhas, muitas outras flores, quase um jardim tão abundante. Flores, galhos, folhas e aquele perfume jamais sentido na terra.        

Aquelas palavras, aquelas imagens, suaves como a brisa e fortes, musicais como os sopros do vento, foram recebidas pelos ouvidos e todos os sentidos do fazendeiro que as sentiu como flechadas venenosas em seu peito. Peito de homem que nunca se deixou às ondas das situações sensíveis.
O fazendeiro, desesperado, sem coração, bruto, temendo perder o que não era seu, pois ninguém é dono de ninguém, agiu como mais sabia: com a força.
         Chamou as criadas, prenderam a menina. Chamou os jagunços, prenderam o menino. Mas, para demonstrar sua covardia, arrancou as flores, destruiu tudo e usou aqueles galhos para agredir o corpo do menino.
         A violência foi tamanha que o menino não resistiu. Deixaram o corpo ali, pois um vento muito forte começou a soprar e os fez correr, buscando abrigo para o medo que lhes consumia. Com o vento veio também a chuva, muita chuva.
         Choveu tanto que não perceberam quando a menina saiu de sua prisão, recolheu o corpo do menino e o levou. Foram-se nos braços do vento e nos feitiços das ondas da paixão.
         Quando a chuva passou e o vento ficou calmo, nem notícia dos dois. Só um sinal havia ficado.

         Onde o menino plantou aquelas flores, derramaram seu sangue. Onde derramaram o sangue do menino, a menina chorou seu choro de saudade e suas lágrimas de paixão.
         Ali nasceu outro pé de flor. Um pé de roseira. Um pé de roseira encantado com os mistérios das lágrimas e do sangue daquela paixão.

A menina foi acolhida pelas ondas dos caprichos da natureza e se transformou em flores, em Rosas. Rosas perfumadas. Rosas que são símbolos de paixão e de afeto. O menino dançou nos braços do vento e se transformou num beija-flor.
        
E assim, ainda hoje e por todos os tempos, eles vivem aquela paixão, dançando nas ondas dos afagos que o menino, em forma de beija-flor, leva à menina, beijando-a, sentindo seu perfume em todas as rosas.
                                         


                                                               Brasil, verão de 2001














Um comentário:

  1. Muito bom os textos Pedro...não podia esperar menos de você! Vi que corrigiu a formatação das fontes...nota 10.

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