GEOPOLÍTICA E IMIGRAÇÃO







QUANDO ELAS E ELES SOMOS NÓS

Por Pedro Lusz


Em minha primeira conversa com leitoras e leitores, relendo meu livro Calma! Que Pressa é Essa? Sobre Educação no Trânsito, Ética e Cidadania, uma leitora me perguntou o que eu considero como a pior coisa na nossa sociedade, que mais atrapalha a nossa vida. Respondi, sem dificuldades, assim, no tempo cênico: o egoísmo! Foi uma conversa muito agitada, muito profunda, com marcas que revolucionaram a vida de muita gente a partir daquele encontro. Eram crianças com idade entre oito e dez anos.
Sempre que uma situação assim e eu nos encontramos, após uma Leitura bem centrada dos sinais que dela consigo traduzir, começo a perceber o alcance de tais cutucões. Às vezes, pesquiso, reflito, escrevo, tomo notas sobre uma ideia e só escuto o eco do silêncio. Quando se não quando, o tumulto nos pensamentos, a teima animada de meus botões e uma pergunta simples, direta e verdadeira de uma leitora detona a revolução para a estrada por onde se pode absorver a essência destas buscas. A encrenca está respondida, ou pelo menos provocada. Assim foi comigo, nos momentos mais revolucionários de minha caminhada.
Após a conversa com aquelas crianças, procuro prestar muita atenção nas ações onde percebo o tempero asqueroso do egoísmo. É claro que sempre soube da importância de me atentar para não ser vítima da força predadora e horrível das pessoas que assim se comportam. No entanto, depois daquele encontro, leio isto com outro foco.
Em minha conversa com aqueles leitores e aquelas leitoras, quando esta prosa começou a tomar forma em minhas matutações, fizemos uma Leitura sincera, assumindo os riscos e enfrentando os desafios da identificação de ações de natureza parecida em nossos hábitos e chegamos à conclusão simples e estarrecedora: tudo que há de inconveniente em nossa caminhada, nesta engrenagem social da qual somos peça fundamental, tem como origem o egoísmo. Antes de defender definições, desejo mesmo é que fosse diferente. Leia, traduza seus dias e suas noites e veja como este sentimento mesquinho esteve sempre presente nas ações que perturbaram sua caminhada.
Hoje, alguns anos depois daquela conversa animada, que revolucionou minhas buscas e a caminhada daquelas leitoras e daqueles leitores, depois de ter este ponto como base para muitas outras conversas, este assunto me cutucou novamente, com uma força inquietante. Foi durante a Leitura de uma notícia que meus botões me interromperam para que eu percebesse que sim, ali estava, na essência de todos os sinais daquele texto, as marcas do egoísmo.
O egoísmo é, como diria minha mamãe, uma peste. Principalmente porque é um trem muito egoísta! A pessoa egoísta quer tudo para si, sem sequer se permitir pensar que há outras pessoas no mundo. A pessoa egoísta tem espaço muito limitado para permitir outras Leituras, que insinuem qualquer sinal que ouse discordar de suas posições e qualquer coisa que esta pessoa egoísta trate como verdade absoluta. Assim é em tudo. Converse com alguém, em quem você percebe sinais de egoísmo, sobre crenças religiosas, sobre política, sobre direitos e deveres no trânsito, na educação da família, sobre políticas sociais, sobre distribuição de renda, sobre segurança. Podemos parar sim, estimados botões. Já percebi o tumulto que estas provocações trazem para nossas vozes.
Foi justamente sobre segurança, educação, direitos e deveres que este assunto entrou em minha prosa, me entristeceu, me inquietou, me assustou, me encantoou, esquentou minha manhã de um inverno frio, cinzento e silencioso, neste começo de 2014, aqui em Maastricht e me convidou a este encontro com você, para esta nossa conversa. Foi uma informação sobre a posição da sociedade brasileira, opinando a respeito da redução da maioridade penal. Uma tragédia anunciada, alimentada, fustigada e, hipocritamente, rechaçada pelo egoísmo das pessoas que sobre ela se manifestam, ou se calam.

Foi uma das cenas mais preocupantes de minha caminhada como professor. Assim que a conversa começou, desejei duas coisas, com muita força em meus pensamentos: que terminasse logo e que nunca mais aparecesse pelas minhas estradas. Infelizmente, a vi tantas vezes depois daquela manhã, que se tornou mesmo um tormento.
Quando cheguei na escola, onde partilhava as descobertas de minhas buscas, sobre a importância da música na sala de aula e do lúdico no desenvolvimento cognitivo e psicossocial das pessoas, meus botões me cutucaram com força e me fizeram ver aquela pessoa. Era um homem forte, na aparência e na postura. Bem, a postura estava mesmo acabrunhada e o nervosismo o traía. Ele se tornava frágil, cansado, assustado e, com todos os sinais, muito triste, à beira do desespero. Sem condições nem vontade de abandonar aquela situação, cumprindo meu papel de gente, de professor que estava facilitando aquela oficina na escola, percebendo que ele estava só e sem coragem para se mover, talvez esperando para ver o que veria, ou para ver se alguém o veria, me aproximei, puxei conversa, perguntei se precisava de alguma informação e me calei logo, pois o que ele queria mesmo era ficar em silêncio. Quando meu pé direito começou a me mover para sair ele se levantou e perguntou se eu poderia fazer a gentileza de avisar na coordenação que ele, o pai do aluno tal, estava ali. Fiquei ainda mais assustado com a rapidez com a qual a secretária, sem afastar os olhos do computador, gritou que avisaria, pois estavam esperando por ele. Claro, percebi que havia problema com o aluno tal. A presença do cidadão nada disse à funcionária, até o nome crucial ser pronunciado. Meus botões balançaram a cabeça e concordaram comigo: uma atitude nada sensata naquela recepção.
Talvez por razão desconhecida, até mesmo para sua consciência, talvez por sentir que, se preciso eu o escutaria, o homem se levantou e começou a conversar. Fomos logo interrompidos pela coordenadora. Bom dia pai. Finalmente conseguimos encontrar o senhor. O chamamos aqui porque seu filho, o aluno tal, está cada dia pior. Agride os meninos, insulta as meninas e ontem, deu um soco num colega, quebrou o telefone de outro e disse para a professora que está se lixando para tudo! Minha Mãe do Cerrado! Fiquemos calmos, estimados botões. Calmos como?! Assim, com esta frieza, ela sequer se preocupou em descobrir o nome deste cidadão, antes de falar com ele. O chamou de pai, parece que nem me viu aqui e falou tudo isto, na bucha, sem tomar nem permitir que o homem tomasse fôlego! O que estará passando na cabeça deste homem? Sabe, coordenadora, somente ontem fiquei sabendo que vocês queriam falar comigo. Minha jornada de trabalho está muito dura e meu tempo está bastante corrido, por isto não olho muito para meu telefone. Está vendo, pai? Enviamos vários bilhetes e seu filho não os entregou. Nossa escola não pode ficar cuidando de alunos com estes comportamentos. Coordenadora, meu filho está mesmo muito mudado. Depois de tanto tempo sem conversar com ele, vejo que estamos bem distantes. Eu preciso que vocês me ajudem. Façam alguma coisa. Conversem com ele. Eu desisto. Não dou mais conta. Não sei mais o que fazer!
Meu espanto, talvez minha preocupação, caminhando para tristeza, com aquela cena foi tão perturbador, tão sofrido, que um grupo de crianças me viu ali parado, parece que percebeu minha encrenca e veio correndo. As crianças já chegaram cantando a Ciranda de Marimbondo e me levaram para nosso encontro. Nunca mais vi aquele homem. Nunca tive condições, nem clima para perguntar quem era o aluno tal. A coordenadora, que não tinha tempo para alunos com alguma dificuldade, provavelmente tinha lá seus métodos e rumos na educação. Ela deixou claro, em nossa rápida conversa, que achava minha oficina desnecessária, pois deixava as crianças agitadas. Claro. Meus encontros mexem com as pessoas. Ora, uma hora cantando, dançando e brincando, na magia da Cultura Popular Brasileira, sem ficar agitado? Só as múmias! Esta coordenadora deve ter deixado a escola, pois nunca mais a vi.

Agora, lendo as informações desta última pesquisa sobre a opinião da sociedade brasileira a respeito da redução da maioridade penal, aquela cena saltou à minha frente e me tumultuou este começo de 2014. Você viu estes dados? Nove, entre cada dez pessoas, na cidade de São Paulo, são favoráveis a esta redução. Há cinquenta projetos no Congresso Nacional, propondo a redução da maioridade penal. Oitenta e nove por cento da população brasileira, segundo a pesquisa, é favorável ao encarceramento de jovens infratores. De todos os assuntos polêmicos que se discutiu no Brasil, nas últimas décadas, este é o que tem concordância esmagadora. Há um senador que esbraveja dizendo que só a prisão resolve. Cometeu crime é bandido e pronto! Afirma o legislador, egoisticamente, se esquecendo de suas próprias ações. Os dados mostram uma fila de pessoas esperando o cárcere. Há meio milhão de brasileiras e brasileiros presos e há um déficit de duzentas mil vagas no sistema carcerário. Enquanto isto, nosso país importa trabalhadores de tantos outros cantos do mundo. Enquanto isto, milhares de bolsas oferecidas pela governo federal esperam jovens que queiram estudar.
Antes de voltar a esta conversa, neste segundo dia de 2014, em minhas Leituras matinais, li novamente as informações. As quatro horas seguintes foram terríveis, um embate medonho com meus botões, pois minha reação, após ler os comentários de leitoras e leitores sobre o artigo de Rodrigo Martins, publicado na revista Carta Capital, em 27/12/2013, foi de desistir de falar sobre este tema. Como não consegui, nem conseguirei parar de pensar sobre isto, cá estamos nesta prosa. Me lembrei também de uma conversa, Já Passamos do Limite, que tive com meus botões, há alguns anos e partilharei com você em breve. Quando li as informações desta pesquisa, estarrecido pelos dados e pela manifestação de tantas pessoas, ao lerem o artigo, favoráveis à redução da maioridade penal e ao encarceramento de nossos jovens, me lembrei também daquele encontro com aquelas crianças, quando me possibilitaram ver, antes e depois de responder aquela pergunta, que o egoísmo é mesmo uma peste e está na origem das misérias que lascam a vida de nossa sociedade.
Mesmo sabendo que as pessoas que me conhecem sabem que sou contra todo tipo de violência, deixo claro que jamais, em momento algum, defendo a baderna com a qual nossa gente está sendo deseducada. Por isto sou tão contrário a muitas práticas presentes em nossa sociedade. Abomino, com toda minha sinceridade, a violência praticada, difundida, defendida e incentivada pelos meios de comunicação. Abomino, com todos os meus direitos e deveres de cidadão, a estúpida, arrogante e miserável imunidade parlamentar e o que mais se pareça com a provocação e perpetuação do medo. Nossa conversa é sobre o egoísmo com o qual tentam, ou tentamos fingir que a encrenca é das outras pessoas, o culpado é o governo, bandido e perigoso é o filho, ou a filha do vizinho. É claro que o vizinho pensa a mesma coisa!    
É claro que me lembrei também daquela cena, onde aquele cidadão, encantoado por tantos trancos da caminhada, possíveis nas labutas de qualquer um de nós, afrontado pela coordenadora, se transformou num retrato claro de milhões de cidadãos e cidadãs que, como ele, perdem o fio da meada, perdem o ritmo da harmonia, perdem a confiança de seus filhos e de suas filhas e, num ato de desespero, pede à escola que faça alguma coisa, que cuide de uma pessoa a quem amou, de quem cuidou e com quem não tem mais sintonia. É sim, um momento de desespero. Não! Neste momento não chamarei de covardia, pois eu vi a dor no rosto e nos olhos dele. E vocês também viram, estimados botões.
Nos dados da pesquisa, pouco ou nada se falou sobre o papel da Escola e a força da Educação. Sobre a família? Por favor, claro que não se pensa na família nestas horas. Até porque, é a família que grita por justiça. Ou por cadeia? Se oitenta e nove por cento da população é favorável ao encarceramento destes jovens, sobra muito pouca gente para se apresentar como família, responsável pela educação! É claro que toda a sociedade sabe que estes jovens não são inocentes, cometeram erros terríveis. Só eles cometeram?! Nos comentários justiceiros e arrogantes sobre o artigo, ninguém, nas dezenas que li, ninguém se lembrou da família, da casa, da primeira grande Escola para todos nós. E não foi por falta de provocação e dados, pois a pesquisa mostrou também que as medidas socioeducativas para os jovens que já estão em desarmonia com a lei não funcionam. Os entraves são os mais presentes em todos os segmentos de nossa sociedade: profissionais estressados, sobrecarregados, carentes de preparo para tarefas tão delicadas e importantes. Falta de ferramentas para estes profissionais, como livros, espaço adequado para uma convivência e um trabalho decente. É também falta de arrojo, falta de envolvimento do Estado e principalmente da sociedade que se sente aliviada por se ver livre destes jovens e, ao ver que foram encarcerados, esta mesma sociedade vira as costas e finge esquecer-se que o tumor só está escondido, mas continua crescendo.
Sensatamente sabemos que esta tragédia aumentará com medidas trágicas como a redução da idade penal. É claro que, caso se tome tais medidas, a violência começará mais cedo. É claro que os predadores mirarão suas maldades e interesses em crianças que, aos doze, treze, onze anos já sabem aprender muito rápido.
Me lembrei, como em tantas situações complexas com as quais me encontro, de minha mamãe que sempre dizia e assim agia: prevenir é melhor que remediar. Sim. Prevenção! Esta palavra tão significativa, carregada de efeitos tão revolucionários, sequer é citada nas manifestações fundamentalistas da hipocrisia de pessoas que se acham cobertas de razão. Também não há referências sobre prevenção nos discursos de ódio de quem tanto quer consertar estes jovens. Já se errou muito nesta tragédia. Já se gastou absurdos com esta tragédia. Já nos convencemos, ou ainda há muita gente fingindo!, que estamos teimando na direção errada. Não seria o momento de pensar e agir, com urgência urgentíssima, com coragem e responsabilidade, investindo nas bases? Mesmo existindo tantas vozes contrárias, os resultados nos mostram que os programas de apoio à família, as políticas sociais, implantadas no Brasil, nos últimos anos, têm apresentado transformações positivas, que indicam ser este um rumo a ser seguido. Não seria o momento de, como se diz lá na roça, cortar o mal pela raiz? Não seria o momento de fazer uma oposição dura, feroz e eficaz ao predador?
Todos os sinais indicam que a origem está na base da sociedade, na Educação e na Família. Se ações responsáveis forem dirigidas nesta direção, fortalecendo e mantendo os vários projetos que já existem, certamente descobriremos que reduzir a idade penal, prender, julgar, culpar e encarcerar sejam ações, quando não inúteis, equivocadas, que só devem ser acionadas, em último instante, lá no final de todas as demais atitudes, aqui discutidas em linhas passadas. Atitudes que estão ao nosso alcance. Porém, desgraçadamente, estão sendo esquecidas, ou evitadas. Será que as universidades brasileiras, com tantos avanços, tantas pesquisas sérias e interessantes, não têm ferramentas com as quais a sociedade possa se empoderar e lidar melhor com este assunto? Acredito ser um tema muito complexo, que não deve ser entregue somente às ideias e decisões dos legisladores, que se comportam como se estivessem muito distante de nossos valores e de nossas dores! 
Ao me lembrar de minha conversa, Já Passamos do Limite, me lembrei de algumas Leituras necessárias, indispensáveis à nossa sociedade, antes de se por a acusar, a desejar prisão, punições de atos violentos, com outros ainda mais violentos. Não deveríamos discutir também sobre a cultura do medo? Todo mundo sabe que se ganha com esta violência estúpida. Não seria o momento de se discutir sobre a responsabilidade de quem ganha com esta baderna toda? Qual o papel desempenhado, com força esmagadora, pela mídia, nesta degradação que corrompe e destrói tantas vidas? Esta Mídia Média Medíocre, banalizou e banaliza a injustiça social, os valores sociais, os princípios mínimos para uma cidadania equilibrada. Banalizou, banaliza e transforma a violência em espetáculo deprimente, degradante e lucrativo. Mas, basta estas palavras sobre esta afronta à vida para algumas pessoas, usando máscaras inescrevíveis, sem tentar disfarçar o egoísmo, dizerem que não posso atentar contra a liberdade de expressão. Então, se a banalização faz parte, valoriza e difunde esta violência, a sociedade não assume, porque não é com ela, e sim com as outras pessoas, a família, bem, a família é a sociedade e quer lavar as mãos, o mais rápido possível, trancafiando todo mundo que for diferente do que ela defende como certo, sobrou mesmo para a Escola.
           
Foi neste momento que me lembrei da última vez que presenciei cena parecida com a do cidadão que desistiu do filho e pediu à coordenadora que fizesse alguma coisa. Fui visitar uma escola em Brasília e, enquanto esperava no corredor, para falar com a coordenação e direção, sobre livros e Leituras, escutei uma conversa com a mesma finalidade, com as mesmas acusações, com os mesmos motivos, com palavras muito parecidas, repetidas dos dois lados, em todas as vezes que isto aconteceu perto de mim. Uma mulher, certamente uma mãe, saiu chorando, depois de assumir que não dava mais conta do filho e pedir que a escola fizesse alguma coisa. Quando saí daquela conversa com a direção, dirigi vagarosamente, tentando entender porque meus músculos se queixavam tanto. Sim, eu estava novamente triste, assustado e com uma sensação de dor nos músculos. Foi quando meus botões me cutucaram e apontaram em várias direções.
Minha Mãe do Cerrado!, quantas escolas, ou academias, ou casas de lutas, casa de brigas, como diria meu papai. Todas com fotos destes brigadores profissionais, que se estapeiam até se matarem, ou pelo menos até se arrebentarem. Em algumas destas casas de lutas, havia cartazes anunciando promoções para pacotes com mais de três pessoas da mesma família. Todo mundo sabe que estas brigas são de verdade. Machucam, derramam sangue de verdade. Brigas que a televisão transmite com grande destaque, com narração e comentários detalhando cada pancada ali desferida. Ora, francamente! Depois de se sentar diante da TV com filhas e filhos, ver aquela pancadaria agressiva, gastar o próprio dinheiro para dar e levar bordoadas, com filhos e filhas, numa escola de brigas, que ferramentas terá a família para lidar com a agressividade em casa e na vida?
Esporte?! Será que a sociedade, esta mesma sociedade que quer, mais uma vez, lavar as mãos, prendendo a torto e a direito, será que esta sociedade sabe o que as crianças e os jovens recebem como lição, pela televisão, pelo computador, pela internet? Será que já se deu ao trabalho de analisar, de refletir sobre a programação dos cinemas,  frequentados pelas crianças e pelos jovens de nosso país? Nas últimas bienais e feiras de livros das quais participei, meu espanto só cresceu, vendo o aumento de publicações sobre terror, sobre violência e tantos outros tipos de banalizar a vida. O mais assustador é que esta literatura deve ser muito apreciada, pois são os livros mais vendidos. Crianças, jovens, pais, mães, professoras e professores compram e ainda dizem que lê quem quer e que as crianças e jovens sabem que é apenas ficção. Será que a sociedade justiceira sabe que isto acontece? Ou melhor, sabe que está sendo parte desta trama contra princípios tão delicados e indispensáveis? Muitas pessoas sabem sim sobre tudo isto, pois aprovam esta desinformação organizada e ainda se enfurecem quando falo sobre esta encrenca em minhas conversas. Meu filho faz o que eu quiser, professor. Em minha casa mando eu! Já escutei isto muitas vezes e minha pergunta é sempre a mesma. Será? Será que esta pessoa manda mesmo em sua casa? Será que esta pessoa tem tanta coragem para fingir que ignora a encrenca na qual está se metendo e enfiando o futuro de sua família e de nossa sociedade?
Fico muito preocupado e triste quando percebo que, com uma frequência crescente, muitas crianças trazem um gosto pelo bruto, pelos jogos pesados, pela violência e sei que trazem isto também e principalmente de casa.         Crianças sensíveis, ávidas por novidades, abertas às grandes descobertas. E as vejo transformando tudo em armas. Um lápis, a tampa de um copo, uma caneta, qualquer coisa vira logo uma arma de destruições terríveis em suas brincadeiras. Basta ver o que se gasta com brinquedos perigosos. Evito usar a expressão arma de brinquedo, pois não consigo imaginar uma coisa tão complexa, tão perigosa, sendo usada como brinquedo.  
Como disse aquela coordenadora, muitas escolas não têm tempo para cuidar de alunas e alunos problemáticos. Além do que, ora, a Escola somos todos nós. Da portaria à direção, são pessoas, com suas dores, seus amores, suas ideologias, suas forças, seus medos, suas encrencas, suas limitações e suas perebas, com suas filhas e seus filhos implorando, aos gritos e com todas as demonstrações possíveis e imagináveis, pedindo socorro, querendo amparo, esperando uma orientação, um destino, um abraço, um sorriso!         Quando aquele homem disse à coordenadora que ele não dava mais conta, que fizessem alguma coisa, ele estava batendo na porta certa, até certo ponto, pois estava na Escola. Porém, ele se esqueceu que estava pedindo ajuda para pessoas que, assim como ele e as inúmeras outras mães e inúmeros outros pais que vi repetirem a mesma cena, estão carentes, perdidas pelas buscas desesperadas, destruidoras e impiedosas, num mundo, numa sociedade governada pela ganância, pelo exibicionismo, onde a voracidade do lucro, disfarçado de Mercado, na pessoa do Capetalismo  oferece tudo, mostra tudo, exige tudo e não dá nada que satisfaça.
Foi quando meus botões se calaram e escutei, novamente, a pergunta que tanto me cutuca.
SERÁ QUE ISTO ACONTECE TAMBÉM COM OUTRAS PESSOAS? Será que outras e outros também estão percebendo o tamanho da encrenca na qual estamos nos metendo? Será que, depois de desistir dos filhos e das filhas, dizer que não dá mais conta, pedir à Escola que faça alguma coisa, e ver que a Escola também não dá mais conta, a família vai dizer, mais uma vez, que desistiu e entregará sua filha, seu filho à prisão? E na prisão, no cárcere, quem dará conta? Sim, quem dará conta, se lá estão a Escola, o Estado, as mães, os pais, as filhas, os filhos, as incontáveis e omissas facções religiosas? Quem dará conta, se estas mesmas famílias, estes mesmos grupos falharam, desistiram, pediram o encarceramento e continuam achando que a culpa é das outras pessoas e se recusam a perceber que também são a sociedade, que também são as outras pessoas.
É claro que muitas pessoas sabem que estão no mesmo atoleiro. Mas, nunca dirão que estão, pois o egoísmo cega a sensatez e tenta justificar a covardia e a omissão!  
 Antes de dar uma pausa a esta nossa conversa, me lembrei, com tristeza e um arrepio de vergonha, que estamos desperdiçando a oportunidade de se viver. Viver tropeçando, cambaleando, se esfolando, caindo, se levantando e aprendendo. Mas, isto também é camuflado pelo egoísmo. Então, me lembrei do senador hipócrita que defende a ideia de encarcerar todo mundo que errar, que violar as leis. Minha Mãe do Cerrado! Quem fechará a grade?!

Maastricht, inverno de 2014.

                













A FRANÇA QUE NÃO É MAIS FRANCESA


Por Pedro Lusz

            Para os meus olhos, curiosos, com a perspicácia de filho do mato, acostumados com as exigências do cerrado, onde é preciso se atentar para não cair em tentação, nem escorregar pelos barrancos dos trancos de cada grota, há muitas situações que não passam escondidas. Às vezes minha companheira Sheila Murta sorri espantada quando lhe falo de detalhes que percebi em momentos tão rápidos e discretos, mas que meus olhos espiaram e registraram, com destaque em minha memoria. Assim, consigo perceber muito. Às vezes é cansativo, até quando apago de minhas lembranças. Às vezes é pesado, até quando codifico, absorvo o que me interessa e descarto o restante, ainda que o deixe num canto, para possíveis consultas. Seguindo este faro do mato, espremo daqui, estico dali, empurro para lá, puxo para cá e vou formando minha Leitura da vida, nos passos e sinais complexos da sociedade, na qual busco a tradução de significados para tantos atos, atos às vezes, desnecessários.
            Meus botões, companheiros de todas as caminhadas e prosas, sabem que estimo muito a arte de perguntar. É claro que também aprecio as respostas sensatas, que provocam muitas outras perguntas e respostas. Na verdade, neste diálogo entre meus botões e eu o que mais aprece são perguntas, pois eles também preservam a tradição de meu papai, que preservou muito bem a tradição de sua gente, do velho Abraão até o estimado vovô Bertié e vovó Avelina, que estão vivas em minhas buscas, todas as perguntas geram muitas outras dúvidas, pesquisas e inquietações, pois são respondidas sempre com uma, ou umas perguntas ainda mais intrigantes.

            Por que será que estas pessoas estão tão assustadas? Para onde seguem com tanta pressa? Será que há uma festa, uma boa livraria, um teatro, uma sombra nesta direção? Todas e todos seguem neste rumo? Não, seguem por todos os rumos. Veja, algumas e alguns até se descontrolam, giram, perdem, recuperam o equilíbrio, rodam sobre o próprio corpo e, na falta de uma rota segura, seguem a multidão. Cuidado, moça! Calma. Fique firme que abrirei esta porta, e você será livre novamente e, pronto, já está segura e não perdeu sua condução. Mas, por que este desespero? Quase rasgou a blusa, quase perdeu a bolsa, poderia se ferir gravemente, mas sequer pensou, ou se lembrou destes detalhes. Quis entrar e entrou. Mas, o próximo metrô passará em três minutos.
            Olho para estas pessoas e percebo que não se percebem. Sequer imaginam o que estou imaginando sobre elas. Ou estarão me observando também, pensando que sequer imagino que me olham, desconfiadas, tentando adivinhar o que estou fazendo aqui, de onde venho, para que venho, para onde vou e para que vou? Olho para elas, escuto minha Leitura e meus botões começam a me cutucar, traduzindo inúmeros sinais desta complexa sociedade, transformada e, sabe-se lá porque motivos, transtornada.

            Neste momento, estou escrevendo de um ponto barulhento, agitado, alegre, diversificado, com pessoas de muitos cantos do mundo. Aos poucos, o que era silêncio, calma, vazio, até o meio dia, se transforma num fuzuê de arte, de todos os tipos possíveis. Corpos em movimentos, em total entrega ao prazer de se sentir vivo e na cultura que lhe representa e com a qual se expressa. Um forte cheiro de suor de gente, sim, meus linguarudos botões, gente que não se banhou nas últimas muitas horas!, mas gente que está se buscando. É um centro cultural e social, onde todas as pessoas podem entrar, sem pagar um ingresso, além dos inúmeros pagamentos para se manter nesta sociedade. Aqui estas pessoas podem entrar, encontrar um canto livre e se colocar em cena. Estou escrevendo de Paris, no Cent Quatre Paris. O prédio que abriga este centro social tem uma história muito interessante, pela transformação até ser o que é hoje. Isto você pode descobrir sem dificuldades.
            No momento é o melhor lugar para mim, pois estou nesta cidade complexa, acompanhando Sheila Murta num congresso de pesquisa em prevenção e, ficar no hotel, impossível, com tanta vida pulsando aos meus olhos que adoram espiar, Ler e traduzir a sociedade por ela mesma.

            Voltando ao metrô, olho para estas pessoas e vejo que uma mudança estrondosa se impôs e continua se impondo, sem pedir licença, sem pedir desculpas e sem se intimidar. Uma mudança através da qual esta cidade, este país, este continente, jamais serão parecidos com o que foram antes. A primeira frase que me vem à cabeça, que salta logo para minha boca e não a prendo, cochichando para minha companheira Sheila Murta é: a França não é mais francesa, como os franceses e as francesas gostariam que fosse. Meus botões concordam em silêncio, pois as perguntas fervilham entre nós.
            Nos rostos, nos cabelos, nos corpos, nas expressões que saltam de cada movimento está claro que a África está aqui, o Oriente Médio, com suas ricas e sutis diversidades está aqui, a América Latina, com seu ritmo quente e seus sinais inconfundíveis está aqui, o mundo chamado de periférico pelo capetalismo está aqui representado. Talvez o que não aconteça com a França, com a Europa branca. Quem as representaria neste momento? É claro que as pessoas tentam disfarçar. Falam baixo, como Sheila e eu, pois não queremos ser o centro dos ouvidos que, sabe-se lá se nos escutam ou não, muitas permanecem caladas. Falam a língua do país onde disputam as condições nada abundantes para se viver. falam, com todos os sinais de uma língua estranha às suas raízes. Ainda que tentem dizer que não, como Azzedine , segurança do Cent Quatre Paris, com quem travei logo uma prosa. Quando lhe disse que ele falava um francês que não era de origem, ele deixou claro que havia se ofendido e disse que falava francês normal. Minutos depois, querendo apagar os sinais do descontentamento dele e mostrar que estes sinais me deixavam mais à vontade para uma prosa, puxei conversa novamente. Perguntou se eu vinha de Portugal. Não disfarçou o alívio, sorriu e disse: “Do Brasil! Entonces, está bien, pois yo hablo un poquito de português. Sou espanhol, de Madri”!
            No metrô, acontece algo parecido. As pessoas falam baixo, falam pouco, se esforçam para que pensem que são daqui, pois falam francês. Mas, o raio do telefone toca justo agora, que tem gente por perto.  Um alô discreto, tentando alongar o som e, dane-se a imigração, danem-se os xenófobos. A musicalidade da língua nativa, com todos os acentos possíveis e impossíveis toma conta do ambiente, bastante hostil, ainda que menos frio que a rua, dentro deste metrô que rasga a cidade, a funduras inimagináveis e impenetráveis para todas as pessoas de minha família que, com seus valores, costumes, receios roceiros e um medo preventivo, jamais entraram num metrô.

            E a França francesa, a França branca, como dizem muitos cientistas sociais, o que pensa sobre isto? O pior que você puder imaginar. Acha horrível, intrusivo, agressivo, uma coisa que suja seus princípios, rouba seu emprego, ainda que prefira viver do auxílio desemprego, tira sua vaga na escola, ainda que esteja fora da escola há décadas, enfeia suas vidas, ainda que nunca tenha se preocupado com estética, nem sua nem de sua cidade, muda sua cultura e mais algumas reclamações possíveis, partilhadas por toda a chamada Europa branca.

            Daqui para frente, sei que é preciso muito cuidado com o que falarei, para não ser repetitivo, pois os movimentos fundamentalistas, de direita e de extrema direita que crescem por estas bandas, tendo como pilar principal o ódio ao imigrante, é um assunto que ocupa, há vários anos, grande espaço nos comentários sociais.
            E os que fazem esta França não francesa ser uma França colorida, divertida, dançada, movimentada, de fala aberta, volumosa, na intensidade e no volume, como as que estão vivas, soltas, buscando ser na arte o que lhes negam na sociedade, agitando esta tarde fria e nublada aqui no Cent Quatre Paris, estas pessoas que são esta mudança, o que pensam? Depois de refletir bastante, percebi que as palavras de minha companheira Sheila Murta, ditas em cochichos, quando lhe disse a frase que originou esta conversa, lá dentro do metrô, estavam perfeitas para traduzir o que as pessoas, protagonistas desta mudança e toda esta mudança significam.
            Não se preocupe. Não sofra muito com isto. A França, a Europa, precisam admitir que provocaram isto. Invadiram o mundo, machucaram, saquearam, tumultuaram a vida, a economia, a paz, a saúde e a cultura de milhões de pessoas, agora eles que aguentem!
            Mas, não vivemos aqui, não sofremos, nem somos felizes aqui. Escutarei quem está nestas condições. Perguntarei a Azzedine. Já nos chamamos de amigos, sorrimos quando nos encontramos, conversamos sobre a força e os valores de nossa gente, refletimos sobre política, cultura, temperos, livros, apertamos as mãos, com sinceridade e nos emocionamos quando falamos da árdua vida de ser imigrante. O que você acha disso tudo, meu amigo Azzedine?
            Não se preocupe. Não sofra muito com isto. A França, a Europa, precisam admitir que provocaram isto. Invadiram o mundo, machucaram, saquearam, tumultuaram a vida, a economia, a paz, a saúde e a cultura de milhões de pessoas, agora eles que aguentem!
            Claro que sim. Copiei o parágrafo inteiro, sem tirar nem por nada e colei aqui, pois as palavras foram as mesmas.



Paris, 14 de novembro de 2013
 

   

2 comentários:

  1. Pedro, sua sensação é a mesma que tive andando nos metrôs de Paris. França que não é mais francesa, é oriental, é americana, é asiática, é alma diversa de muita gente de diferentes lugares. Senti, respirei, vivi, como você! Eu amo ser brasileira e também sou filha de imigrantes, por isso a sensação é muito particular e própria!

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  2. Lindas palavras Pedro, e questiono: seria uma questao de aguendar essa incerteza e tremor que a imigracao esta trazendo ou talvez de agradecer a entrada dessas riquezas multiplas numa sociedade conservadora? A meu ver, o desafio maior de paises como a Franca eh de saber usar esta diversidade para fazer uma sociedade melhor para todos. Todavia, semelhante ao acontecido no passado durante o processo inverso, onde o 'invasor' toma conta da terra nova, desta vez a terra invadida esta se deixando ser tomada por fraquezas dos 'locais' em enfrentar resolutantemente suas proprias convicoes e normais socias que por centenas de anos fizeram os acreditar a superioridade de certos grupos existe. Se isso nao mudar, a riqueza da diversidade cultural ira se apagarar e a probreza da segrecao social ira tomar conta.

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